Por Glailson
dos Santos (Belém)
Vivemos
dias extraordinários. O importante movimento que todos temos acompanhado e que
neste momento, apesar das históricas mobilizações do dia 11/07, parece recuar
em várias cidades pelo país como parte do processo natural após conquistar
importantes vitórias, demonstrou de forma clara a toda uma nova geração que
vale muito a pena lutar. Esta lição não será esquecida facilmente. Contudo,
como ocorre em qualquer situação, o novo não pode surgir sem trazer consigo
elementos do velho e o importante avanço que demos até aqui traz também
suas próprias contradições, que precisamos debater e superar de forma
critica e consciente para avançar arrancando as vitórias que o movimento ainda
exige.
Nestes
dias, em que todos estão mais dispostos a discutir política, tem sido comum ver
muitos levantarem a bandeira da horizontalidade e da radicalização da
democracia contra um suposto caráter autoritário da esquerda. É importante,
então, refletir sobre essa questão que nos parece ter alguma relação com a
ideologia individualista e a uma falsa noção de liberdade e democracia que é
fortemente propagandeada pelas mesmas elites políticas
e econômicas contra quem clamam as manifestações.
Sobre democracia, individualismo e coletividade...
A
ideologia capitalista eleva os interesses individuais acima dos coletivos e,
portanto, coloca o individuo como protagonista inquestionável de todo processo
histórico. Consequentemente, os capitalistas pregam uma noção deturpada de
democracia que, em tese, garantiria uma “plena liberdade individual” como forma
de compensar a sua confessa incapacidade de promover uma genuína igualdade
entre as pessoas.
O
capitalismo diminui a liberdade humana reduzindo-a ao direito à propriedade
privada e lhe conferindo a natureza mesquinha da luta pelo enriquecimento
individual. Os capitalistas restringem a igualdade a uma abstrata e hipócrita
"igualdade de oportunidades" e acabam admitindo como fato que a suposta
liberdade de uma parcela da população deva conviver com a escravização, pela
miséria, de outra parcela muito maior da humanidade. É assim que de forma
cínica dizem promover a liberdade declarando que pobres e miseráveis são
“livres” para escolher onde, como e quando e quanto trabalhar e que qualquer
um, com esforço, capacidade e determinação, pode se dar bem e enriquecer.
É
importante lembrar que a democracia nasceu e se desenvolveu durante séculos
excluindo a maioria pobre que não pagava imposto. Na visão “democrática” que
imperou durante a maior parte da história humana eram excluídos da vida
política as mulheres, os jovens, os analfabetos e os estrangeiros. A bem da
verdade, a liberdade pregada pelos democratas burgueses nunca foi igual para todos.
O fato,
que a demagogia dos que se beneficiam com a ordem capitalista tenta ocultar, é
que liberdade e igualdade são conceitos indissociáveis. Em uma sociedade
baseada na exploração do trabalho, ninguém é livre. Pois não há liberdade
possível entre desiguais, a menos que se considere como liberdade a liberdade
de explorar ou ser explorado, de oprimir ou ser oprimido, de escravizar ou ser
escravizado. A liberdade humana real só é possível com o fim da exploração
capitalista.
Assim, a
democracia nos marcos capitalista não passa de uma farsa que busca tornar
aceitável a exploração da grande maioria da humanidade por uma elite
capitalista que é, ela própria, prisioneira de sua condição como exploradora,
precisando manter um isolamento social, moral, físico e até emocional do
restante da humanidade, apenas para garantir a manutenção de seus privilégios.
A liberdade e a democracia de fato são possíveis com a destruição do
capitalismo.
Sob o
domínio capitalista a liberdade é amplamente entendida como mero livre
exercício da individualidade. É interessante notar que mesmo nos históricos
protestos que varrem o país percebemos um certo culto à individualidade que é
saudado por muitos como exemplo máximo de democracia. Cartazes individuais
substituem as tradicionais faixas erguidas coletivamente. A aversão a qualquer
comissão, representação e organizações surge também, mas não somente, como
reflexo dessa visão individualista de liberdade e democracia.
É natural que ideias plantadas em nossas cabeças desde o berço nos conduzam a
equívocos sobre os quais nem costumamos pensar, mas é importante que reflitamos
sobre onde essas ideias nos levam ao nos manterem divididos mesmo quando é
nossa intenção (e necessidade) unir todos aqueles que estão realmente de acordo
com nossas reivindicações. Afinal, pensamento claro e senso critico sempre
serão fundamentais ao sucesso definitivo de qualquer mobilização.
A grande confusão ideológica que marca o início das massivas manifestações que
questionam a ordem brutal, injusta e desigual imposta à humanidade por uma
elite de privilegiados, não só no Brasil, como no mundo, é uma etapa que só
pode ser superada por meio da experiência pratica. É no enfrentamento com as
elites e as instituições que buscam manter a ordem com a qual estas
manifestações se enfrentam que a juventude e os trabalhadores vão romper
paulatinamente com as ideologias capitalistas que nos são impostas por todos os
meios.
As
discussões e deliberações do movimento pelo Facebook, através de enquetes
eletrônicas, método tão reivindicado por boa parte do movimento atual, por
exemplo, é em si própria excludente, pois limita os debates àqueles que têm
habilidade, condições materiais e tempo livre suficiente para acessar e
interagir com esta ferramenta. Um movimento realmente democrático precisa, sim,
incorporar as modernas ferramentas de comunicação, sem, contudo, abandonar por
completo a experiência acumulada de organização daqueles que sempre estiveram a
serviço das lutas dos setores mais explorados e oprimidos da sociedade.
Sobre o papel das direções e dos movimentos “sem direção”...
A
desconfiança demonstrada pela juventude que iniciou e impulsionou as históricas
“jornadas de junho” é justa e progressiva, pois expressa a desilusão com
supostos representantes que, através da farsa democrática dos capitalistas, são
eleitos apenas para defender os interesses das elites. Essa desconfiança é
importante porque expressa também em grande medida a desilusão com Dilma e o PT
que se diziam representantes dos trabalhadores, mas uma vez no poder, seguem a
mesma cartilha neoliberal do PSDB e demais partidos de direita. Porém, é
importante compreender que não é possível existir movimento sem direção e que
sem uma direção consequente, mesmo com toda disposição, podemos não ser capazes
de atingir os objetivos que buscamos.
Representar
ou dirigir, não significa necessariamente impor. Dirigir pode significar também
apontar o caminho, propor soluções. É natural que alguns movimentos surjam sem
uma direção formal, mas isso não pode, nem deve, durar para sempre. Alguém
precisa escrever os documentos, propor resoluções, sistematizar a memória dos
acontecimentos, representar o movimento nas negociações, presidir as reuniões,
falar em nome do movimento. No cotidiano alguém sempre acaba assumindo essas
tarefas e, mesmo que de forma sutil e inconsciente, acaba por dirigir as
coisas, sem que nada tenha sido discutido e decidido formalmente pelo conjunto
do movimento.
Desta
forma pode ocorrer de uma direção acabar sendo sutilmente imposta e o
democratismo acaba se convertendo em seu contrário, autoritarismo, ainda que
oculto sob o frágil embuste de um "movimento sem direção". Por isso
precisamos, sempre que possível, pautar a questão da direção e eleger
formalmente nossos representantes, buscando mecanismos que promovam o controle
dos representados sobre seus representantes como votações, plenárias
periódicas, mandatos revogáveis, balanços periódicos e intensa vigilância.
Afinal, a
história não é uma marcha estática e predeterminada imposta a nós por um
imperativo divino ou natural. A história é feita por mulheres e homens, seres
por definição capazes de refletir sobre a realidade e transformá-la. A única
constante na história humana é a mudança, por isso podemos ser otimistas na
medida em que compreendamos a dimensão dinâmica e coletiva das forças que movem
a história e nossa responsabilidade sobre a construção de nosso próprio
destino.
Felizmente
a história nos ensina que em momentos como o que vivemos a consciência da
população em geral avança acelerada, em saltos. A entrada da classe
trabalhadora nas mobilizações que marcou em especial as mobilizações dos dias
27/06 e 11/07 demonstraram a disposição e viabilidade de unir trabalhadores e
juventude para mudar de verdade o país, a exemplo do que já vinha ocorrendo em
outras partes do mundo. Então, temos todos os motivos para ser otimistas em
relação aos rumos que tomaremos e às novas conquistas que podemos alcançar.
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